ARPA

Galeria Karla Osorio

Texto curatorial para estande Galeria Karla Osorio – Feira ArPa 2023
CORPO, MEMÓRIA, PAISAGEM
Carollina Lauriano

Percebendo as relações entre corpo e paisagem, sujeito e natureza, indivíduo e espaço como temática relevante para abordar questões atuais relativas à sensibilidades e às percepções contemporâneas sobre o mundo ao redor, para sua participação nesta edição da ArPA, a galeria Karla Osório estabelece um diálogo entre os artistas Matheus Marques Abu, Paulo Lobo e Selva de Carvalho. Ao debruçar sobre a pesquisa de cada artista, observamos que, em comum, todos traçam uma aproximação conceitual que pensa as relações entre corpo, memória e paisagem como uma relação humana entre si e com o meio que os cercam. E essas relações podem ser observadas mais diretamente ou subjetivamente no conjunto de trabalho criados pelos três artistas para as obras que serão apresentados durante a feira de arte. Pensado para respeitar os diálogos, mas também as individualidades de cada artista, o estande pode ser compreendido nesses três atos que permeiam as intersecções entre os trabalhos de ambos artistas: corpo, memória e paisagem. Embora cada um artista esteja aqui como representante maior de um desses elementos, isso não significa que os outros não permeiam seus trabalhos, pelo contrário. É da observação entre essas relações que os trabalhos ganham maior força, individual e coletivamente.

Corpo
Selva de Carvalho é o nome/duplo/corpo criado por Stephanie de Carvalho Klabin. E esse dado é importante para a compreensão do trabalho criado pela artista e que compõe a proposição instalativa apresentada no estande. Nela, Selva cria uma possibilidade de pensarmos nas possibilidades de trânsitos entre corpos, criando relações híbridas entre a memória do corpo e a paisagem, seja essa interna ou a externa. Inclusive, é nesse limiar que o trabalho da artista se estabelece, como percebemos em Ex-feras queridas, uma série de 108 desenhos em nanquim, pastel seco, bastão oleoso e lápis aquarelável que a artista compõe figuras que surgem da relação entre memória, sonho, inconsciente, mitologia, feminino, buscando as relações de cura para um corpo em transformação. Ao lidarmos com essas feras internas como lugar de apaziguamento, Selva nos convida a colocar nosso corpo em movimento, ampliando nossas percepções em relação a nós mesmos e ao nosso entorno. E é nessa expansão do corpo que Selva, inclusive, expande seu trabalho para outras materialidades, dando uma dimensão maior do corpo, agora em relação à arquitetura e ao espaço. Esse movimento de ocupação nos permite pensar sobre uma ideia de corpos compartilhados e intercambiáveis, que permanecem em constante estado de adaptação como forma de aprendizado. Como se vestir esses outros corpos que a artista propõe nos coloca em estado de troca, onde sempre algo se leva é algo se deixa. Para Selva, vestir aquilo que nos é estranho, aquilo que nos repele, que nos coloca em estado de atenção é exatamente onde encontramos um lugar de liberdade para nosso corpo. É desse desconforto que se cria lugares de empoderamento

Memória
Matheus Marques Abu desenvolve pesquisas independentes sobre ancestralidade, espiritualidade e a diáspora africana no Brasil, colocando em perspectiva a história colonial e suas reverberações na vida diária das pessoas racializadas. Para o jovem artista, a pintura surgiu como possibilidade criativa durante a pandemia e se estabeleceu enquanto pesquisa durante uma viagem a Salvador, o qual entra em contato com um conjunto de símbolos ancestrais africanos conhecidos como “adinkra”. Os adinkras são conjuntos de símbolos trazidos pelos povos acã da África ocidental – região compreendida como Gana – que representam ideias expressas em provérbios, e são um entre vários sistemas de escrita africanos, fato que contraria a noção de que o conhecimento africano se resuma apenas à oralidade. Trazidos para o Brasil por pessoas escravizadas, esses ideogramas foram esculpidos principalmente em portões e janelas no Brasil imperial por ferreiros escravizados, compondo uma forma sofisticada de comunicação e resistência à subalternidade. Resgatar essa linguagem através de suas obras é imediatamente desafiar os regimes de visibilidade dominantes e o cânone da história eurocêntrica (incluindo a história da arte), trazendo à luz uma história alternativa invisível aos olhos da mente colonial. Dessa forma, ao incorporar esses elementos à sua pintura, Abu reclama, não somente para si, mas para um grupo social, um lugar de reinscrição de novas subjetividades na história, como especialmente podemos notar na pintura 15 minutos depois da meia noite. Nela, a figura central esboça um gesto de contemplação e relaxamento enquanto lê um livro. Aqui, conhecimento é transformado em ato de liberdade. Letramento racial enquanto resgate de memórias ancestrais e origens capazes de transformar perspectivas individuais e coletivas, buscando um novo imaginário do corpo negro na sociedade. Na pintura, Abu não coloca mais o corpo negro em estado de atenção, trazendo os cães como esse elemento de guarda, permitindo que esse grupo social possa ir em busca de sua prosperidade enquanto algo zela por esse momento.

Paisagem
Com uma pesquisa multidisciplinar, Paulo Lobo parte da sua relação com o suporte da pintura para adentrar e explorar os campos da escultura, literatura, vídeo, ação e fotografia dentro das suas potências de construção conjunta e da possibilidade política do contato entre eles. Em 2020, com sua mudança para Itatiba (interior de São Paulo), começou a construção de um novo modo de trabalho: ao ar livre, explorando largas escalas, formas e interações ampliadas na busca de outros limites. Nesse sentido, a paisagem passou a atuar não somente como assunto, mas como a própria materialidade do trabalho. Assim como observamos no conjunto de esculturas apresentado pelo artista, que partem do seu olhar atento sobre a transformação do entorno de seu ateliê. As esculturas dão continuidade ao pensamento que guiou o desenvolvimento de uma pintura em grande formato que o artista realizou ao ar livre e que permanece em exposição no espaço, sofrendo permanentemente a ação da natureza, buscando pensar relações entre a impermanência e a regeneração e as fabulações possíveis sobre as míticas físicas e espirituais que regem a organicidade de uma floresta, bem como a ação do ser humano para pensar sua expansão e/ou destruição. Construtores da floresta é o nome dessa pintura, que também dá nome a série de esculturas desenvolvidas a partir de madeiras de desmatamento encontradas e recolhidas por Paulo ao redor de seu ateliê. Ao ressignificar esses troncos – que possivelmente deram espaço para mais uma construção -, esculpindo a partir deles seres que esboçam gestos entre a figuração e abstração, é como se o artista construísse uma espécie de réquiem denunciativo sobre a ação do homem sobre a natureza, ao mesmo tempo que liberta esses espíritos como forma de proteção. A pintura que compõem a apresentação de Paulo Lobo também evoca pictoricamente essas relações entre o físico e o espiritual que envolvem o olhar para uma floresta. O gesto rápido pode conter em si tanto a presença do vento, quanto de energias invisíveis ao nosso olhar, mas que podem ser percebidas em presenças além da fisicalidade.

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Ao colocar em relação essas perspectivas tão distinta de saberes e gestualidades, a proposta aqui é nos centrar sobre uma retomada de consciência sobre nós é sobre tudo aquilo que nos cerca como uma forma maior de compreensão individual e da criação de um futuro coletivo que contemple uma sociedade que respeita todas as existências em suas pluralidade e diversidades, buscando um equilíbrio entre razão, espírito e natureza.