Zodíaco

A humanimalidade e os corpos vibráteis
Paulo Herkenhoff

A instalação Zodíaco (2024) de Paulo Lobo é composta por seis grandes flâmulas esvoaçantes instaladas ao ar livre no Centro Cultural Serrinha margeando a obra do artista franco-tunisiano Jean Paul Ganen, famoso por seu trabalho em landart com plantas e, dentro do 22º Festival Arte Serrinha, a genial criação de Fábio Delduque, este ano dedicada à lusofonia transatlântica, no município paulista de Bragança Paulista. Pintadas nos dois lados, cada flâmula estabelece diálogo simbolizador entre o par de seres.     

Na dupla Juana Azurduy e Oxóssi, Paulo Lobo entrecruza a formação social da América do Sul de modo singularmente libertário porque se ajuntam povos originários e África, fêmea e macho, como uma cópula entre a indígena guerreira da região andina Juana Azurduy, uma heroína que lutou pela independência da Bolívia, e Oxóssi, o orixá guerreiro que remete à música A fonte de Paulus V (1986) do carioca Jorge Ben Jor, em que se passa a cavalaria de Jorge (Oxóssi, na Bahia), com seu machado – “eparrei, eparrei, eparrei!”.

Paulo Lobo usou sua própria sombra para delinear seu Oxóssi pintado em seu sítio de Itatiba. Muito aqui se remete à fotografia de Sombra minha, o autorretrato fotográfico de Mário de Andrade clicado no sítio de Tarsila do Amaral em Santa Teresa do Alto em 1º de janeiro de 1927.

A dupla Buriti e Sumé imbrica dois seres da mitologia indígena. Sumé é o deus tupi das leis e da sabedoria. No eixo do poder, Sumé é mito fundacional, enquanto o Palácio do Buriti é a sede do poder executivo do governo do Distrito Federal.  Sumé ensinou o conhecimento dos usos da mandioca, o fogo e a organização social, mas tendo sido desobedecido por seu povo, desapareceu com a promessa de retornar um dia para punir os faltosos. Já o Buriti é uma palmeira com a função ecológica de manter os olhos d’água. Sob a ótica do “perspectivismo ameríndio” (conforme Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima), existe uma natureza relacional dos seres e da composição do mundo. Em tradições indígenas amazônicas, não existe hierarquia entre os humanos, os animais, as plantas (como o buriti) e os minerais, pois os seres providos de alma reconhecem a si mesmos e àqueles a quem são aparentados como humanos, mas são percebidos por outros seres na forma de animais, espíritos ou modalidades não-humanas. Portanto, o par Buriti e Sumé opera a construção de humanidade compartilhada, obtida pela construção dos corpos, como na pintura de Paulo Lobo.

Numa face de quatro das flâmulas está um animal e, na outra, uma pessoa como se um fosse o avesso do outro. Paulo Lobo convoca o conceito de humanimalidade de Michel Surya, que é resumido como “a ineliminável animalidade do homem.” As relações humanimalitárias definidas em Zodíaco ocorrem em quatro pares. 

Um dia eu fui puxada / Puxada simplesmente / E fui aproximada por esse bafo quente que me olhava / Eram dois olhos gigantes e um bafo quente / Aquele olho / Aquele olho me deu de comer / Me botou / Me botou na mão dele / E ali eu chupei o sangue dele / E aquele sangue me permitiu começar a crescer […] / Eu via aquelas pessoas quase como alimento / Com uma curiosidade / Mas ali tava eu junto desse rei […] / O rei resolveu que eu deveria ter o cargo de ministra / E ministra eu fui […] (Paulo Lobo, A pulga).     

O primeiro é A pulga e O louco. Lobo reinterpreta a têmpera O fantasma da pulga (1819-1820) de William Blake. Aqui se convocam os conceitos de fantasmal, fantasmática e figural. Já se disse que, para a psicanálise, o fantasma é uma articulação entre um gozo esvaziado e um gozo reencontrado como resíduo. Para Jacques Lacan, o que o neurótico mais teme é a castração. Aqui se dá a fusão fantasmal entre a pulga (resíduo da história da arte) e a loucura no mais extremo da neurose. A essa altura, cabe recorrer ao conceito de figural com que o filósofo Gilles Deleuze define a figura humana imaginada pelo pintor Francis Bacon. Deleuze observou como a ruptura com o figurativo se deu na pintura moderna a partir da negação da figura (pelas várias formas do abstracionismo) e com a afirmação do figural contra a figuração, porque nos estados caóticos não basta que uma forma se configure. Em Zodíaco, as formas de seres vivos ou encantados são co-movidas pela energia eólica, que lhes agrega intensidade cinética e enervação do suporte e as trans-torna em corpos vibráteis. Na pintura de Lobo, a histeria do louco resulta em arte. 

O instinto, do latim instinctu, é inato ao ser vivo. A conflação humanimalitária em A vespa e A grávida trata da dor física e do instinto de sobrevivência no mundo animal. A picada da vespa cavalo-do-cão, aqui representada por Paulo Lobo, é a mais dolorosa do mundo, atingindo o grau 4 na Escala Schmidt, que mede a intensidade das picadas. A grávida se promete à dor do parto. Em termos gerais, o corpo humano só pode suportar quarenta e cinco unidades de dor, mas no parto, a mulher suporta até cinquenta e sete unidades de dor, como se tivesse vinte ossos quebrados simultaneamente. A vespa pica para se defender de ataques, a procriação pela grávida decorre do instinto de manutenção da espécie. No entanto, Freud revelou que aquele instinto primordial da manutenção da espécie humana foi substituído pelo princípio do prazer, comandado por irresistíveis impulsos de gozo e volúpia, para além de sua vontade, e não por um motivo elevado qualquer.

A humanimalidade da dupla de imagens Jabutis e Minotaura se processa como encontro entre duas mitologias sobre o tempo. Entre os indígenas, a lenda cosmogônica do jabuti é vinculada à ideia de persistência (acepção do termo jabuti em tupi), longa vida (os jabutis vivem oitenta anos em média e alguns chegam a cem), pois ele é um animal que escapa de ser comido por se      esconder em suas tocas. “Para a gente indígena não importa a forma do personagem, mas o conteúdo do que se pretende ensinar”, esclarece Daniel Munduruku. A lenda grega do Minotauro é um embate entre vida e morte. Metade homem, metade touro, o monstro canibal, que comia pessoas vivas, foi encerrado num labirinto onde foi morto por Teseu, que escapa com vida. A invenção de uma Minotaura por Paulo Lobo é uma contradictio in terminis, posto que etimologicamente o termo tauro alude a touro, não admitindo, salvo pela invenção poética do pintor, sua forma no feminino. No entanto, afirma a Minotaura: “sou pintada, logo existo”. No contexto deste par diacrítico de Zodíaco e da resistência dos materiais, Teseu é o jabuti, na correspondência entre a maçã do herói e a couraça do animal. 

O que pode ser um Tubarão Onça? O que é um pintor? Essas indagações são respondidas no Festival Serrinha pela dupla formada por um feroz ser-anfíbio e, em seu reverso, pelo ser-artista. O animal Tubarão Onça é predador das águas e da superfície da terra, enquanto o pincel do Pintor rasteja sobre a superfície do suporte. Há artistas que predam a mais valia simbólica do Outro – no início da fotografia, houve os que pensaram que o novo meio técnico roubava a alma do fotografado. O filósofo Maurice Merleau-Ponty afirmou que nossa embriologia e nossa biologia são cheias de gradientes (em L’oeil et l’esprit), como Paulo Lobo opera em suas obras humanimalitárias. No mesmo texto citado, Merleau-Ponty avisa que a visão do pintor é um nascimento continuado e que o invisível de meu corpo se investe sobre outros corpos que vejo. 

A pintura de Paulo Lobo substancia e amalgama tinta, corpo e carne. Em L’oeil et l’esprit, Merleau-Ponty corrobora a posição de Paul Valéry de que o pintor empresta seu corpo ao mundo. Paulo Lobo empresta seu corpo aos signos de seu Zodíaco. A linguagem da pintura não é instituída pela natureza, mas Paulo Lobo reinstitui a natureza. Todo o Zodíaco não é o idêntico, pois é constante devir acientífico dos seres, é metamorfose do eixo significante/significado, é deslocamento do sentido dos signos zodiacais, é mutabilidade quimérica, é uma alucinação visual. Em Mil platôs, Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam que “o nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade. O nome próprio é o sujeito de um puro infinitivo compreendido como tal num campo de intensidade.” Mutatis mutandis, o nome do artista Paulo Lobo é, em si mesmo, um centauro de seu Zodíaco, metade lobo, metade gente.

Fotos: Ricardo Takamura
Drone: Celino Pires